Blogue do Maia de Carvalho

POR TRÁS DE CADA GRANDE FORTUNA HÁ UM CRIME. Honoré de Balzac

terça-feira, janeiro 02, 2007

Textos sobre o Aborto II

Hoje estamos com um texto de 1976. O problema, no entanto, continua o mesmo. Poderão as mulheres, só por si, decidir sobre a morte ou a vida dos seus filhos?

«Dez semanas. Estás a crescer a uma velocidade impressionante. Há quinze dias nem três centímetros medias e mal pesavas quatro gramas. Agora medes seis centímetros e pesas oito gramas. Não te falta nada. Do antigo peixinho apenas resta o facto de inalares e expirares água através dos pulmões. O teu esqueleto de ser humano está formado, com os ossos substituindo já as cartilagens. As tuas costelas vão-se colando umas às outras pelas extremidades, como se o teu corpo se abotoasse à frente como um casaco. E o teu ovo, embora se vá dilatando, torna-se cada vez mais pequeno. Não tarda, vais achá-lo incómodo. Hás-de agitar-te, espreguiçar-te, os teus braços e as tuas pernas farão os primeiros movimentos. Ora um toque com o cotovelo, ora um toque com o joelho. É o que eu estou à espera. O primeiro toque será um sinal, um consentimento. Foi assim que eu fiz, lembras-te, para dizer à minha mãe que não continuasse a beber o remédio. E então ela deitou o remédio fora. Claro que é uma espera inversamente proporcional ao teu crescimento: tanto mais lenta quanto mais veloz ele é; recorda-me o exército amigo que nunca mais chegava. A culpa é da imobilidade. Duas semanas imóvel, na cama, é de mais. Como farão as mulheres que chegam a ficar sete a oito meses? São mulheres ou são larvas? O único ponto em que estou de acordo é que faz bem. Desaparecem os espasmos, as cutiladas mesmo no fundo da barriga. Foram-se os enjoos, e a perna desinchou. Mas sucedeu-lhes uma espécie de prostração, uma ânsia que se assemelha à angústia. Porquê isto? Talvez por causa do ócio, do tédio. Não conhecia o ócio, nunca o tédio me aflorou, sequer. Não há meio de ver passar os dois últimos dias, e preparo-me a enfrentá-los como se fossem dois anos. Esta manhã discuti contigo. Ficaste ofendido? Tomou-me uma espécie de histeria. Disse-te que eu também tinha os meus direitos, que ninguém estava autorizado a esquecê-lo e muito menos tu. Gritei-te que me tinhas exasperado, que já não aguentava mais. Estás a ouvir-me? Desde que soube que fechaste os olhos parece-me que já não dás atenção ao que te digo, que te deixas embalar numa espécie de inconsciência. Acorda, vá. Não queres? Então vem para aqui, para ao pé de mim. Encosta a tua cabecinha nesta almofada, assim. Vamos dormir juntos, abraçados. Eu e tu, tu e eu... Mais ninguém há-de entrar na nossa cama.»

ORIANA FALLACI
«CARTA A UM MENINO QUE NÃO NASCEU»