Blogue do Maia de Carvalho

POR TRÁS DE CADA GRANDE FORTUNA HÁ UM CRIME. Honoré de Balzac

sábado, agosto 30, 2008

PAUSA PARA CAFÉ E LEITURA


Estou a ler vários livros ao mesmo tempoEstou a ler vários livros ao mesmo tempo. É um costume já antigo, gosto de, quando já estou farto de uma história, passar para outra. Depois há certas subtilezas da escrita que só se degustam bem quando podemos parar para pensar, é estimulante ler-se um livro para descansar de um outro, enquanto que lá dentro do pensamento (que Fernando Pessoa dizia que “não há um lá dentro nem um lá fora”), se vão completando os entendimento, compreensão e apropriação da coisa lida. A memória é um estranho labirinto onde estamos sempre a perdermo-nos e a encontrarmo-nos, quando falamos ou escrevemos. Mas queria eu dizer que acabei de ler a Tieta do Agreste, de Jorge Amado que estava a ler enquanto ia lendo as curtas narrativas que várias vezes por semana se distribuem gratuitamente com o jornal Diário de Notícias, juntamente com, o Contraponto, de Aldous Huxley e a Lã e a Neve, de Ferreira de Castro que encontrei, por um euro, num alfarrabista de rua em Ponte do Lima. Curioso, três livros anti-capitalistas que explicam claramente como se forma o Capital em várias épocas da História: sempre roubando o suor e o aforro de quem trabalha.

Um aparte: - Saíram recentemente dois livros de autor pombalense que, embora com paninhos quentes, nos levanta um pouco o véu que vem cobrindo a maneira como algumas famílias nativas e forasteiras enriqueceram. Refiro-me ao Na Terra do Meio-Boi e ao Na Terra da Meia-Vaca, de Maria Luís Brites, cara colega que muito prezo. Claro que o fito principal dos livros era falar de alcunhas, não de política económica local. Quer isto dizer que ainda há em Pombal gente que não alinha cegamente com este “neoliberalismo socialista e social-democrata” que nos governa, salvo seja. Perdoem-me os puristas o conceito antinómico atrás referido.

Tamanha volta só para ter pretexto de transcrever alguns parágrafos da Tieta, deliciosos de tão anti-feministas ou feministas em grau mais elevado, já que tal passagem se refere ao conselho de mulher madura, experiente e sabida.

«- Tieta! Mana!

Tieta aguarda na porta, imóvel, o rosto carrancudo, o olhar frio, hierática. Elisa estende os braços, suplica:

- Me leve com você, mana, não me abandone aqui...

-Já lhe disse...

- Eu quero ser puta em São Paulo. Não me importo.

Astério escuta, perplexo, uma pontada no estômago, a dor aguda. Tieta desvia os olhos da irmã para o cunhado, simpatiza com ele, o bobalhão:

- Cuida da tua mulher, Astério, bota ela na linha, ensina a te respeitar. Uma vez, já lhe disse o que tinha que fazer. Por que não fez?

- Mana, pelo amor de Deus, não me deixe aqui. - Elisa se ajoelha no chão, diante de Tieta.

- Leve ela embora e faça como eu lhe disse, Astério. É agora ou nunca. - Por um momento pousa os olhos na irmã e sente pena. - A casa fica com vocês. Se precisarem de alguma coisa é só mandar dizer. Elisa perde por completo o pundonor e a contenção:

- Me leve, Mãezinha, me bote em sua casa de raparigas.

Tieta olha para o cunhado: e então? Astério liberta-se da perplexidade, da dor de estômago, do preconceito, arranca a venda dos olhos, puxa a esposa pelo braço:

- Levanta! Vamos!

- Me solta!

- Levanta! Não ouviu?

Vibra-lhe a mão na cara. Tieta aprova com a cabeça.

- Obrigado, cunhada, por tudo. Até mais ver.

Empurra Elisa, siderada, em direcção à casa, uma das melhores residências da cidade, adquirida por Tieta para nela um dia vir esperar a morte, devagar, agora posta à disposição da irmã e do cunhado, em usufruto. De empurrão em empurrão, chegam ao quarto de dormir. Elisa tenta escapar:

- Não toque em mim.

O bofetão derruba-a na cama. A camisola enrola-se no pescoço, crescem os quadris na vista turva de Astério.

- Quer ser puta, não é? Pois vai ser é agora mesmo - estende a mão, arranca-lhe o trapo de náilon, a bunda inteira exposta, tanto tempo de jejum.

- Pra começar, vou te comer o rabo!

Um estremeção percorre o corpo de Elisa. Arregala os olhos. Repulsa, medo, espanto, curiosidade, expectativa? Heroína de novela de rádio, agitada por emoções contraditórias.

Ai, pelo amor de Deus! Esposa submissa, sobe de costas o abrupto passo, dobra os ombros sob o peso do lenho - entranhas de fogo e mel, vergalho desabrochando em flor, Elisa rompe a aleluia na noite de Agreste. Ai, o Taco de Ouro! »


TIETA DO AGRESTE

Jorge Amado


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